sexta-feira, 6 de maio de 2011

Vento vivo

José Carlos Purificação, o Zezinho
Por Carla Lacerda
Fotos: Weslley Cruz e Arquivo pessoal


Af af af af af af af af af af af af af…

Rum rum rum rum rum rum rum rum...

Af af af af af af af af af af af af af…

Rum rum rum rum rum rum rum rum...

“Vamboooora, Zezinho, se não você vai chegar atrasado!”

Das janelas do ônibus, os colegas de escola de Zezinho, José Carlos Purificação de Alecrim na certidão de nascimento, observavam o jovem baiano cruzar as ruas da capital de Goiás. Quarenta minutos correndo. Com mochila nas costas. E com muito gosto, frise-se.

- Achava uma felicidade cortar Goiânia, não via dificuldade, não.

E ele atravessava a cidade, do Setor Vera Cruz, onde morava com a família, para estudar no Sesi de Campinas, onde fazia o terceiro ano. E engana-se quem pensa que Zezinho trocava o assento de um coletivo – vá lá que nunca foi confortável mesmo andar de ônibus em Goiânia – pela sola do seu sapato simplesmente porque queria economizar dinheiro. Ele até revertia esta quantia guardada em lanches na escola, mas este não o era seu principal objetivo. Zezinho gostava de correr.

- Eu via pela televisão e achava bonitas as corridas. Sempre tive esse sonho.

Mas por que correr com mochila nas costas, então, Zezinho? A caminho da escola? Não é melhor, mais fácil, correr numa pista, treinando mesmo?

As perguntas que talvez você faça agora têm uma resposta bem pragmática. Correr, assim de maneira despretensiosa, era a única forma de Zezinho ... C-O-R-R-E-R. Parece estranho? Então, para não te confundir ainda mais, melhor fazermos uso de um recurso bastante utilizado nos cinemas. Segue flashback!

De volta à infância

Imagine uma criança que não corre. Depois dos 4 anos de idade, esta foi a realidade de Zezinho. Ele não podia correr. Não podia jogar futebol. Não podia um monte de coisas. E tudo por causa de um erro médico.

- Estava brincando e caí em cima do meu braço direito. Fraturei o cotovelo e o ombro. O problema foi que o médico engessou de forma errada, o que desencadeou processos inflamatórios. Tive que tomar muito antibiótico; meus ossos ficaram fragilizados com isso, quebravam por qualquer coisa.

Após o episódio - que ocorreu na cidade de Canabrava, no Mato Grosso, para onde Zezinho, os irmãos mais velhos e os pais haviam se mudado depois de deixar a Bahia -, o movimento no braço direito do jovem ficou limitado. Uma frase, então, passou a reverberar por longos anos em sua cabeça:

- Você não pode correr. Você não pode correr. Você não pode correr.

Em uma oportunidade, o mantra quase foi quebrado. Quase:

- Lembro que uma vez meus pais até deixaram eu jogar futebol, mas com um aviso. Se me machucasse, eu saía. É não é que caí durante um jogo e quebrei o braço esquerdo!

E assim se passou a infância e adolescência do baiano de Correntina. O tempo, este sim, corria. Por sorte, rápido. Na linha de chegada, ao invés da certeza do fim do percurso, a expectativa de uma nova rota. Que se abriu com a mudança de Zezinho e dos irmãos para a capital goiana, em 2000.

Em Goiânia

Af af af af af af af af af af af af af…

Rum rum rum rum rum rum rum rum...

Af af af af af af af af af af af af af…

Rum rum rum rum rum rum rum rum...

“Vamboooora, Zezinho, se não você vai chegar atrasado!”

Depois que começou a correr para ir à escola, Zezinho não parou mais. Tomou gosto pelo o que já gostava. E, agora, não era mais um simples telespectador dos eventos esportivos. Ele dava as primeiras passadas. AO VIVO E A CORES. Imagine o Galvão Bueno narrando o início desta trajetória:

- Zezinnnnnnnnnnnho corre do Setor Vera Cruz a Campinas, em Goiânia!

- A rrrrrrrrrrevelação juvenil já encara agora um percurso de 20 quilômetros, saindo da capital até Trindade.

- Aos 17 anos, Zezinnnnnnnnnnnnnho começa a participar das corridas de ruas! Ele quer ganhar um carro como premiação!

Com o microfone - ops, a palavra -, o atleta:

- Quanto mais eu corria, melhor.

- Correr era um sonho de criança. Isso mudou todo o meu psicológico; foi superação mesmo. Cheguei a ser depressivo.

- Quando encontrei o atletismo, foi ótimo porque não tinha como eu cair, como acontecia no futebol. Eu podia competir.

E, aos 17 anos, conforme anunciado por “nosso Galvão”, Zezinho começou a participar das corridas de rua em Goiânia. A primeira foi em agosto de 2004, uma prova de 10 quilômetros.

- Falei pra todo mundo, amigos e parentes, que ia chegar em primeiro lugar e levar o prêmio pra casa, que era um carro. A competição tinha cerca de 2 mil atletas.

E como foi a prova, Zezinho?

- Quando completei dois quilômetros, já estava esgotado. Deu um desespero ver um monte de mulher me ultrapassando. Primeira corrida não é fácil, não!

E o resultado?

- Só ganhei mesmo um diploma de participação. E todo mundo pegou no meu pé perguntando “cadê o carro?” – diz, entre risos.

Zezinho não levou o carro, mas em sua segunda corrida...

- Apareci na capa do jornal O Popular. Eu era uma das “cabecinhas” de atletas fotografadas na competição – comenta, também com jeito matreiro.

Pode até ter sido coisa do acaso, mas depois da discreta aparição no jornal, a fama começou a correr atrás de Zezinho. Em 2007, ele protagonizou uma matéria no Globo Esporte local.

“A música perde um tecladista, mas o esporte ganha um atleta”.

Tecladista? Como assim? Zezinho não era só um rapaz latino-americano, que antes de correr, vendia jornais aos domingos pelas ruas de Goiânia? Sim, leitor, você está certo: esta última informação também é nova, eu ainda não a tinha revelado. Ah, tá, mas eu parei na história de Zezinho tecladista...

Pois então: dois anos depois de chegarem a Goiânia, o irmão mais velho de Zezinho, Leandro, formou uma dupla sertaneja com um colega. Mesmo já com nome de cantor, Leandro preferiu investir em outra identidade artística: Fernando. Nascia, então, a dupla Lucas e Fernando, que tocou nos bares da capital e de Aparecida de Goiânia a partir de 2002. Mas os jovens perceberam que precisavam de um tecladista nas apresentações...

- Pois é, eu ficava no teclado, mesmo sem saber tocar nada, para poder ajudar eles. Colocava o disquete no teclado e ficava lá – confessa Zezinho, que também vendia CD’s da dupla.

Quer saber como o Globo Esporte descobriu este episódio, veiculado em setembro de 2007? Simples: em agosto do mesmo ano, Zezinho participou dos Jogos Parapanamericamos do Rio de Janeiro – já, já conto esta história. E, de lá, voltou com uma medalha de bronze na prova dos 1.500 metros. Os sonhos de Zezinho começavam a se materializar.

Na elite do esporte

Zezinho treina na pista de corrida da PUC Goiás

Mais um miniflashback antes de entrarmos no Parapan do Rio. Depois que desembestou a correr – para a escola no Sesi, nas corridas de ruas de Goiânia, para Trindade -, Zezinho ouviu um conselho de um amigo:

- Por que você não corre na pista de atletismo da Católica? – Wanderley Sidney, mais conhecido como “Cowboy”, se referia à universidade da qual era aluno.

E Zezinho foi. E virou cobaia do cowboy, que cursava Educação Física e começou a treinar o jovem.

- Correr com orientação técnica é outra coisa. Aprendi com o Wanderley a concentrar mente e corpo. Fiz vários testes e ele percebeu que eu tinha resistência e mantinha velocidade. Meu perfil é para corridas que a gente chama de meio-fundo – 800 metros e 1.500 metros.

Zezinho começou a aplicar os ensinamentos e a direcionar seus esforços para o esporte, quando no final de 2005, outro conselho, de outro amigo, o colocou em competições nacionais.

- Como eu tenho a limitação no braço direito, por causa das sequelas da queda na infância, o Tito Sena – atleta paraolímpico goiano, cuja conquista mais recente foi a medalha de prata no Mundial de Atletismo da Nova Zelândia, em janeiro de 2011 - falou pra mim da categoria T-46 no atletismo. São as provas de corrida em que os atletas com alguma deficiência no membro superior participam.

Em 2006, então, aos 20 anos, Zezinho participou do Campeonato Paraolímpico Nacional, em Belém. No fim do mesmo ano, num circuito em Brasília, conseguiu o índice para o Parapan do Rio. Correu os 800 e os 1.500 metros.

- Dos 10 atletas que participaram dos 800 metros, no Rio, meu tempo era o pior. Fiquei entre os últimos na prova.

O jovem não se abalou. Quatro dias depois, competiu nos 1.500 metros.

Af af af af af af af af af af af af af…

(Agora não tinha mais o ‘rum rum rum’ do ônibus e carros das avenidas de Goiânia).

Af af af af af af af af af af af af af…

“Meu Deus, sera que eu vou ganhar?!”

A 300 metros da linha de chegada, Zezinho estava na frente.

Pisadas mais fortes.

Pisadas mais fortes.

Pisadas mais fortes.

Mas eram dos adversários. Zezinho os sentia bem próximos.

- Faltando 250 metros, o mexicano me passou, depois mais um atleta. Na reta dos 100 metros foi aquele sufoco; o quarto colocado vindo atrás. Fiquei em terceiro por frações de segundos - conta Zezinho, que conseguiu o bronze no Parapan.


Zezinho posa ao lado de voluntários no Parapan do Rio, em 2007

- Foi na raça mesmo, na pressão – complementa o jovem. Depois daquele resultado ruim nos 800 metros, eu não acreditava que pudesse ganhar.

Pois trate de acreditar, Zezinho! Pode parecer clichê – e realmente é -, mas o sonho começava a virar realidade.

Depois do resultado, novas conquistas importantes. Também em 2007, Zezinho foi o terceiro colocado no Mundial de Taiwan.

- Pensa num cabloco como eu, do Centro-Oeste, passar 20 dias numa ilha da China?

Este era o começo das viagens internacionais. E também do contato com outras culturas.

- Taiwan tem muitos eletrônicos. O trânsito é caótico: são muitas motos, bicicletas, carros. No fim de semana, tem tanta bicicleta que é como se uma das pistas fosse totalmente destinada a elas.

E a gastronomia, Zezinho?

- A comida é muito estranha, tempero ruim, carne de cachorro. A gente praticamente almoçava e jantava só pizza e McDonald’s – revela o jovem.

E para a China ele foi, para a China ele voltou. Em 2007, esteve em uma das ilhas do país; em 2008, estava na capital Pequim, cidade que assusta pela quantidade de habitantes: quase 20 milhões.

- 2008 foi o melhor ano da minha vida. Participar de uma Paraolimpíada, correr num estádio lotado com 90 mil pessoas, ouvir e ver turistas gritando o nome do Brasil... A emoção foi muito grande, principalmente na abertura e no encerramento do evento. E o Cubo D’água? (refere-se ao complexo aquático construído para receber as provas de natação, saltos ornamentais e nado sincronizado). Foi tudo impressionante. E olha que eu nem ganhei medalha.


Zezinho, de verde, durante prova em Pequim

Mas ainda há tempo para as novas conquistas. Foram 17 anos sem poder correr e, em apenas sete, medalhas e índices alcançados para participar de competições internacionais. Em Pequim, o jovem, que usa no email o codinome “Vento Vivo”, ficou em 7º lugar na prova dos 1.500 metros – ele correu a base de remédios, por causa de um problema no tendão.

- Era uma dor que já me acompanhava há algum tempo. Por causa do treinamento, há um desgaste natural do tendão e do calcanhar. Mas, em agosto do ano passado, fiz uma cirurgia – conta.

Renovado, o hoje estudante do segundo semestre do curso de Educação Física da Pontifícia Universidade Católica de Goiás corre atrás de uma bolsa de estudos e de mais vitórias. 2011 é ano de Pan, 2012, de Olimpíadas, 2016, de Olimpíadas no Rio...

- É um momento de incentivo ao esporte. Quero correr até os 37 anos e ter o estudo como garantia de sustento.

E quem sabe, já em Guadalajara 2011, Zezinho consegue o sonho de ter uma medalha dourada?


Zezinho faz graça durante pose ao lado de monumento na China,
na paraolimpíada de 2008. Preparação agora é para 2011 e 2012

- Em 2007, um mexicano ganhou o ouro no Rio. Lembro que quando fui receber o bronze, um integrante do comitê brasileiro cochichou no meu ouvido: ‘No Parapan do México, você dá o troco”.

Nós estaremos aqui, Zezinho, torcendo para o Galvão Bueno narrar esta vitória.





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