sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

JEITO CABLOCO

Por Carla Lacerda
Fotos: Arquivo pessoal


Adevanir Ferreira Barbosa
Aquela colcha de retalhos que tu fizeste
Juntando pedaço em pedaço foi costurada
Serviu para nosso abrigo em nossa pobreza
Aquela colcha de retalhos está bem guardada.

Agora na vida rica em que estás viveeendo
Terás como agasalho colcha de cetim
Mas quando chegar o frio em teu corpo enfermo
Tu hás de lembrar da colcha e também de mimmm.

A melodia suave e a voz inconfundível da dupla sertaneja Cascatinha e Inhana,sucesso absoluto entre as décadas de 1950 e 1970 no Brasil, rompia o silêncio de Piracanjuba, município com vocação agropecuária do Sul goiano. O rádio de madeira Semp (atual Semp Toshiba) era a sensação do momento nas fazendas da região e conseguia reunir uma boa parcela da população em torno dele. Ainda moleque, com 8 anos, Adevanir Ferreira Barbosa se encantava com a novidade tecnológica, que atraía os vizinhos à sala de estar da sua família. “Parentes e amigos da roça se juntavam para ouvir as músicas e também a Voz do Brasil, o nosso Jornal Nacional”, brinca hoje o senhor de 59 anos, funcionário da Pontifícia Universidade Católica de Goiás desde 1985.

Mas, naquela época, seu Adevanir nem de longe sonhava como aqueles fins de tarde frutificariam em sua vida. Semente no coração, as músicas raízes encontraram solo fértil para se desenvolver na vida do menino de sorriso largo. A dureza da lida no campo era quebrada pelo embalo dos Sabiás do Sertão – codinome do casal Cascatinha e Inhana:

Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Ai menina, meu amor, minha flor do cafezal
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal

Ou pela sanfona de Caçula e Marinheiro:

Sei que na vida perdi
A minha felicidade,
Ficou somente amargura
Paixão, tristeza e saudade!
Lá no cantinho do céu
Sei que está me esperando
Aquele alguém que foi meu
Por quem eu vivo chorando!

O fato é que em pouco tempo não somente a enxada seria instrumento nas mãos de Adevanir. A voz rouca e a habilidade com o violão também se tornaram um diferencial na história de um dos porteiros mais simpáticos da Área 4 da PUC Goiás.

De volta à cidade natal

Foi em Picanjuba que o menino Adevanir descobriu o rádio. Mas foi quando retornou com a família para Morrinhos, sua cidade natal, após uma temporada em Goiânia para cursar o primário, que o jovem começou a cantar junto com o irmão Iron. “O pessoal começou a nos chamar para cantar em festas. E como a gente sempre gostou de música raiz, sertaneja, a gente ia”. No repertório, canções de Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Silveira e Silveirinha, Zico e Zeca, Liu e Léo, entre outros. “Mas era tudo só por diversão, por gosto mesmo. Nunca pensei em fazer disso uma profissão”.

E a labuta diária não dava mesmo tempo pro seu Adevanir.

- Pensa num homem que já puxou enxada! - comentou ele, durante uma sexta-feira de novembro ensolarada.

E eu pensei. Seu Adevanir estava diante de mim, com uniforme impecável, sapatos e meias pretas, relógio no pulso esquerdo, e uma atenção, uma educação, uma solicitude imensuráveis, e infelizmente, raras nos dias de hoje. A todos que passavam pelo portão da Pró-Reitoria de Extensão e Apoio Estudantil, ele cumprimentava, dava bom dia, atendia às solicitações, resolvia o que lhe era pedido.

- Sabe, Carla, eu não tenho muito estudo. Mas a educação é de berço. Eu peguei responsabilidade grande desde muito cedo.

Verdade. Com 5 anos, seu Adevanir capinava a roça. Aos 10, cuidava do pasto e da lavoura. Aos 13, comandava os peões que seu pai, Antônio Luiz Barbosa, contratava quando ficava responsável por uma alguma empreita na zona rural. Tocou gado. Tirou leite. Plantou arroz. Aprendeu, na prática, o que é viver em família.

- Sempre fomos muito unidos (Adevanir tem mais seis irmãos). Mudamos várias vezes de cidade, de fazenda, mas sempre juntos – eu, pai, mãe e irmãos. Se eu te falar... É uma coisa que não tem lógica.

- Pra você ter ideia: eu sou um dos mais novos e fui o último a casar, porque cuidava dos meus pais. Tinha medo de minha futura mulher não gostar deles – diz seu Adevanir.

- Mas dei sorte. Encontrei uma mulher boa. Nós combinamos que é uma beleza! – anuncia, sorrindo.


Seu Adevanir, com a esposa Rosilda Santos Barbosa

Em Goiânia

E foi na segunda vez que morou na capital do Estado, a partir de 1974, que seu Adevanir conquistou não só o coração de Rosilda, mas também um espaço no mercado de trabalho da já concorrida zona urbana goiana. Primeiro trabalhou no Colégio São Damiano, no Parque Ateneu, local onde conheceu a esposa. Depois numa empresa chamada Eletrocon.

- E aí sabe quando parece que Deus tem uma coisa boa pra você usufruir?

- Pois é – continua seu Adevanir. Um antigo diretor do Aldeia Juvenil, o professor Benedito, o Bené, pediu indicação para as irmãs do São Damiano de alguém que sabia plantar, cuidar de porco, enfim, de alguém que sabia das coisas da fazenda.

Nos anos 1980, o Aldeia Juvenil ficava no câmpus 2, área que hoje concentra os cursos de Zootecnia, Educação Física, Gestão Ambiental, além de alguns mestrados. O Aldeia foi criado a partir de uma iniciativa de um grupo de professores da Universidade Católica de Goiás, motivado pela situação do menor infrator e pelo compromisso de buscar soluções para o problema.

- As irmãs me indicaram. Fiquei três anos no Aldeia. Foi uma experiência muito boa, de poder ajudar quem precisa. Lá tinha uns “cablocos meio danados”, mas dá uma satisfação quando encontro alguns deles hoje, casados, trabalhando. Muitos me tinham como pai – recorda-se seu Adevanir.

E Deus continuou zelando da vida do jovem de sorriso largo. Durante sua temporada no Aldeia Juvenil surgiu um curso para ser segurança na universidade. Seu Adevanir fez, e, desde então, trabalhou em todas as áreas da hoje PUC Goiás. Há cerca de oito anos, está na Área 4, na entrada da Proex.

- A universidade é a minha segunda casa, minha segunda família.

Cantarolando

Seu Adevanir não fez do dom de cantar uma profissão, mas também não desperdiçou o talento.

- Tem que ver ele cantando. É uma beleza! – diz uma jovem ao subir as escadas rumo à Proex.

O reconhecimento já é público pelos corredores da PUC. Mas seu Adevanir é modesto.

- Não, não é assim não – tenta desvencilhar-se dos elogios.

A repórter decide tirar a prova dos nove.

- Canta um trechinho de uma música pra mim, seu Adevanir... Que música o senhor ouvia, o senhor gostava?

De que me adianta viver na cidade
Se a felicidade não me acompanhar
Adeus, paulistinha do meu coração
Lá pro meu sertão, eu quero voltar.

Só estes quatro versos de “Saudade da minha terra” foram mais do que suficientes para perceber que Seu Adevanir é bom mesmo de “gogó”. E, graças, a insistência do irmão José Ferreira, que hoje tem 71 anos, ele começou a usar o tempo livre para cantar.

Primeiro, no Jardim Bela Vista, bairro onde mora. “Reunimos com os vizinhos e amigos nos fins de tarde e começamos a cantar”, relata. De repente, o grupo começou a receber convites para tocar em festas de casamento e outros eventos. Já passaram por Bela Vista de Goiás, Hidrolândia, Piracanjuba, Pontalina, Jaraguá, Aparecida de Goiânia, entre outras cidades.


Seu Adevanir (o primeiro à esq.), com o grupo Tradição Sertaneja
E, em 2009, também por incentivo do irmão Zé, sanfoneiro, Adevanir e o grupo, já batizado de “Tradição Setaneja”, gravaram um CD.

- Começou como uma brincadeira. O Zé tinha medo de morrer e de a gente não deixar nada para a família, nenhuma lembrança. Daí, a gente reuniu o povo, demos uma passada nas músicas e gravamos, de uma vez, numa gravadora do Novo Mundo. Eu nunca tinha entrado num estúdio.

Foram feitas 500 cópias do CD “Cavalo Preto – Chalana”. Além das músicas de abertura, instrumentais, que emprestam o nome ao álbum, outras 14 faixas foram gravadas. Todas elas, de raízes. Tem “Franguinho na Panela”, “Não tenho Piedade”, “Telegrama”, entre outras.

- A gente nunca imaginava gravar um CD -, comenta seu Adevanir, que também tem outros feitos artísticos – ele participa do grupo de Folia de Reis da PUC, que, inclusive, tem apresentações marcadas para os próximos dias 9, 10 e 11 de dezembro.

O senhor de sorriso largo continua:

- Parece que tudo tem um limite, mas com a música é diferente. Ela é infinita. O grupo surgiu, foi crescendo meio desproporcionalmente...

Ainda bem, seu Adevanir. Hoje, nossos olhos e ouvidos agradecem o privilégio de poder testemunhar e escutar uma história tão bonita. Certamente daria uma bela letra de uma moda sertaneja.