terça-feira, 21 de dezembro de 2010

TALENTO LAPIDADO

Danilo Alencar
Por Carla Lacerda
Fotos: Wagmar Alves e arquivo pessoal

- O que eu faço aqui é o que dou conta de fazer. Eu dei conta de vender e dou conta de fazer teatro.
    
O instinto de sobrevivência sempre foi algo muito latente na vida do teatrólogo Danilo Alencar, 54. Muito antes de mostrar as quase duas centenas de troféus que conquistou com seu grupo “Arte & Fatos”, expostos em vitrine na Coordenação de Arte e Cultura (CAC) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, o artista apresentava era outro produto pelas ruas da Brasília dos anos 1960 e 1970. Nascido em Tiros, cidadezinha mineira do Alto Paranaíba, mas criado na recém construída capital federal, Danilo aprendeu desde muito cedo a se “virar” na vida. Nas adjacências do Setor Hoteleiro Sul, o então menino de 8 anos ganhava um troco vendendo picolés ou ajudando o pai a comercializar o salgado feito pela mãe na Sociedade de Transportes Coletivos de Brasília, a TCB, até hoje uma das grandes empresas do Distrito Federal.

 - Nesta época eu engraxava, limpava quintal, encerava casa para outros, vendia picolé naquela região...

 - E na sua adolescência você já sabia que queria fazer teatro?

 - Não, não. De jeito nenhum.

 - Mas o que você pensava? Em que área iria se formar?

 - Não, eu não sabia que eu ia me formar; na verdade, achava isso muito pouco provável.

 - Então, você pretendia...

 - Trabalhar, eu tinha que trabalhar; trabalhar. Era trabalho, depois trabalho, depois trabalho, depois trabalho.

E foi assim, sustentado nos pilares ensinados por seu Ulisses e dona Nazaré – “meus pais deixaram dois legados que foram a base, o termômetro, o grande guia na vida de todos nós (refere-se também aos 14 irmãos): trabalho e honestidade” –, que Danilo, paulatinamente, conquistou suas vitórias. Foi da lida diária que colheu elementos que mais tarde transformaria em ofício permanente, em arte, em risos e lágrimas para o grande público. Foi da labuta como vendedor e representante comercial durante mais de 20 anos, e da oportunidade que se abriu quando passou no vestibular de História na PUC Goiás, que conseguiu desenvolver o talento guardado e adormecido na alma.

 - Se eu não estivesse na PUC, era muito provável que continuasse trabalhando como vendedor. Foi aqui que tive a oportunidade de agregar valores, de estudar e de poder exercer o meu trabalho (Danilo é funcionário da universidade desde 2000).

Ele continua:

 - Eu me sinto muito, muito, muito feliz em ter a minha carteira assinada e todos os direitos que um ser humano obrigatoriamente tem dentro de uma instituição. O que eu faço aqui é o que eu dou conta de fazer; eu dei conta de vender e dou conta de fazer teatro.
   
De Tiros rumo ao Planalto Central

Localizada a 365 quilômetros de Belo Horizonte, a cidade de Tiros, já conhecida como “capital dos diamantes”, e hoje com pouco mais de 7 mil habitantes, é considerada um polo de emigração. O êxodo dos nativos em busca de oportunidades é marca consolidada do município. Tanto que há tirenses espalhados por todo o Brasil e exterior, de forma mais concentrada na capital mineira, em Brasília e nos Estados Unidos. A cidade até criou uma festa anual, “Tirense Ausente”, que tem como público-alvo as pessoas nascidas na região, mas que não residem mais no município.

 - Minha família saiu de Tiros num contexto de migração muito forte que houve no início da década de 1960. Minha cidade natal é pequena e viveu também muito desta onda de ida para os Estados Unidos -, confirma Danilo.

De Minas Gerais, seu Ulisses, dona Nazaré e os 13 filhos (dois morreram muito pequenos) se estabeleceram em Rubiataba, no Centro Goiano. Foi lá que Danilo, aos 7 anos, ganhou seu primeiro calçado. “Era um conga”, recorda-se. Da rápida estada no município, a família migrou para Brasília, capital federal que acabara de ser construída.

 - Lá eu morava numa...

Momento de hêsito.

 - ...invasão. Brasília estava começando; era o que tinha para as famílias que vinham de fora. Eram barracos residenciais de cerca de três cômodos, que ficavam perto da W-3 Sul. Eu lembro que já existia o Hotel Nacional. Eu e aquela renca de irmãos brincávamos naquelas piscinas com fontes.

Com o crescimento da capital, que ganhava novos prédios dentro de uma arquitetura já planejada e em ritmo acelerado, os barracos foram destruídos. A família de Danilo mudou para o residencial X-Norte, em Taguatinga Norte. “As casas, muito pequenas, eram conhecidas como Pombal, porque parecia mesmo uma casa de pombo”, relata.

Vida apertada numa cidade de avenidas largas, de horizontes largos. Danilo optou por não esmorecer. Trabalhou muito, rabiscou poesias, participou de festivais de músicas, assistiu, aos 14 anos, na Escola Parque, a peça “Trate-me Leão”, do famoso grupo “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, que revelou talentos como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita, entre outros.

Aos poucos a veia artística da mãe – “era autodidata, escrevia poesias” - encontrava meios para pulsar no corpo de Danilo. Em 1974, com 18 anos, estreava no teatro, atuando no espetáculo infantil “Ovolada”, criação coletiva do grupo Cogitação, do qual também foi cofundador. Tal qual um diamante das Minas Gerais, a pedra bruta começava a ser lapidada.

No centro do tablado
Ensaio da peça “Anjos Poetas” na PUC, em 1997
Em 1988, com 32 anos, Danilo começa um novo capítulo de sua história.

 - Depois de um tempo que deixei Brasília e vim para Goiânia, eu ingressei na universidade, um sonho que nunca pude realizar. Assim como muitos jovens brasileiros, eu era arrimo de família, tinha que ajudar em casa. Portanto, um dos momentos mais felizes da minha vida foi saber que eu tinha capacidade de entrar numa universidade. Foi realmente uma vitória porque eu tive uma formação escolar muito frágil; na minha época a gente não tinha opção: ou estudava ou trabalhava.

Na Universidade Católica de Goiás, hoje PUC, Danilo cursou História e não perdeu tempo. Já no primeiro ano de faculdade apresentou o projeto “História no Teatro”, cujo propósito era a representação de fatos históricos por meio da linguagem teatral. Também nesta época fundou o grupo “Artes & Fatos”, do então Programa Cultural, atualmente Coordenação de Arte e Cultura da PUC Goiás, ligada à Pró-Reitoria de Extensão e Apoio Estudantil (Proex).

O diamante começava a reluzir. E, hoje, o brilho materializa-se também nas conquistas do grupo “Artes & Fatos”, que soma 22 anos de trajetória. O repertório já conta com quase 18 espetáculos, muito deles premiados nacionalmente. São aproximadamente 200 títulos, entre troféus e seletivas para participação de mostras importantes em todo o País, como o Cena Contemporânea, de Brasília, e o Festival de Teatro de Florianópolis.

O grupo, que conta atualmente com sete integrantes, também conseguiu a façanha de abocanhar um espaço no cenário concorridíssimo de São Paulo. A peça “Balada de um Palhaço” (clique aqui para assistir ao making of), último trabalho do “Artes & Fatos”, ficou um mês em cartaz na Avenida Paulista, a convite do Sesc. A temporada gerou um convite para que o espetáculo fosse o representante brasileiro no Festival Ibero-Americano do Museu da América Latina, em São Paulo. E mais: “Balada de um Palhaço” deverá ser apresentado em fevereiro do ano que vem, no México.

 - Estamos num momento ímpar do grupo. Os obstáculos vão sendo superados aos poucos. A PUC nos dá apoio de estrutura física, a minha própria contratação é um apoio. Mas viver de teatro não é fácil. A movimentação do grupo pelo interior do Estado e País afora é possível graças às leis de incentivo municipal, estadual e federal. Estamos tendo fôlego e sensibilidade das instituições que, enxergando a perspectiva do sucesso dos espetáculos e a qualidade de trabalho do grupo, têm nos apoiado -, destaca Danilo.

Ele também lembra que a nova produção do “Artes & Fatos”, uma adaptação de cinco contos do escritor João Guimarães Rosa, foi viabilizada a partir da conquista do prêmio Myriam Muniz, concedido pelo governo federal. “Este ano nós fomos contemplados com o prêmio maior em toda a região Centro-Oeste, de R$ 120 mil, que vai custear a montagem do novo espetáculo. Este é um feito muito grande, porque este prêmio, o mais importante do Brasil, antigamente ficava restrito ao monopólio de Rio e São Paulo. É a segunda vez que o conquistamos; com “Balada de um Palhaço” também foi assim”.

Em Madri, Danilo lê artigo sobre seu ícone no teatro
E quais são os próximos sonhos do jovem de hoje 54 anos, que fez da própria vida um roteiro de oportunidades não desperdiçadas?

 - É conhecer o inglês Peter Brook, diretor de teatro e cinema, que mora atualmente na França.

Danilo reforça:

 - Se eu conseguisse traduzir o que o teatro significa para mim, porque eu não posso, seria dizer que ele é meu vício, meu ar, meu alimento. Representa a minha energia, a minha vida.

*****

Conheça alguns destaques do grupo Arte & Fatos:

- 1988 – “Nos Trilhos da História” – a desagregação do sistema primitivo, com adaptações dos textos de Marx e Engels.
- 1989 – “Liberté, Uai” – no bicentenário da Revolução Francesa e centenário da Inconfidência Mineira.
- 1990 até 1995 – “Sob o Sol de Canudos” – no centenário do Movimento de Canudos.
- 1995 - 1ª montagem de "Herdeiros de Zumbi".
- 1997 – “Anjos Poetas” – Um tributo aos 150 anos da morte de Castro Alves.
- 2000 – “Opereta do Cerrado” – para a inauguração do Memorial do Cerrado da Universidade Católica de Goiás.
- 2002 – “Toca Mariles!” Uma história da ditadura militar.
- 2003 – “A Aurora da Minha Vida”
- 2004 – “A Clara do Ovo”
- 2006 – “Balada de um Palhaço”

3 comentários:

Unknown disse...

Texto maravilhoso, envolvente.Comecei a ler e não teve jeito..tive q terminar.Parabéns!

Dani Guimarães disse...

Impressionante quantas pessoas interessantes existe a nossa volta.

Parabéns pela iniciativa do Blog.

Bjinhos,
Dani Guimarães
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Blog Enter Na Moda
http://enternamoda.blogspot.com

Unknown disse...

Adorei conhecer um pouco da vida do Danilo. Aumenta admiração que sempre tenho por ele. Homem de teatro que com sensibilidade penetra na alma humana e nos faz aqui neste Cerrado, nesta Universidade de Goiás, continuar a ter esperança em homens e mulheres.
Parabéns a autora do texto e ao Danilo que, espero, tenham um 2011 repleto de muito teatro, que é o que parece alegrar a vida dele e a nossa também.
Aldevina Maria dos Santos
Profa. no ENF e coordenadora do PIMEP