terça-feira, 22 de março de 2011

“A Universidade faz parte de minha vida”

Luiz de Gonzaga Vieira
Por Jales Naves
Fotos: Arquivo Pessoal

A displicência naquele ano de 1964, quando estava concluindo o curso ginasial no Colégio Regina Pacis, em Araguari, Minas Gerais, sua terra natal, e ficou de segunda época em Matemática, acabou definindo, mais tarde, a trajetória de Luiz de Gonzaga Vieira. Como havia sido reprovado por dois décimos pelo professor João Duarte, casado com sua tia, ele prometeu que iria estudar muito, as férias inteiras, e tirar 10. Queria recuperar o prestígio com o pai, o fotógrafo Geraldo Vieira, o mais famoso da cidade, que se recusara a ir à formatura dele, com receio de que não passasse na matéria. A lição foi positiva, ele se empenhou bastante, conseguiu a nota máxima e, ao mesmo tempo, passou a gostar da disciplina, que abriu as portas para ele em vários colégios e na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Na PUC Goiás construiu uma elogiada carreira no magistério superior, à qual dedicou-se integralmente, a partir daí, e ocupou as mais diversas funções – professor, dirigente sindical e gestor.

João Duarte teve um segundo momento importante em sua vida: ao se envolver com o movimento estudantil em sua cidade, em meados dos anos 1960, na época efervescente, acabou sendo indiciado em Inquérito Policial Militar (IPM). Ele atuava na União dos Estudantes de Araguari (UEA), participou de um congresso na cidade mineira de Governador Valadares, de grande repercussão, e quando os militares assumiram o poder, vários de seus colegas foram presos. A sua sorte foi o tio ter boas relações com o pessoal do Batalhão Ferroviário, que comandou os IPMs na cidade, e o livrar da prisão.

Mudando de planos

O professor Antônio Marques
o cumprimenta em sua formatura
Nascido no dia 31 de julho de 1947 e segundo dos sete filhos de Célia de Souza Vieira, que fora professora quando solteira e depois apenas cuidou de criar a família, e de Geraldo Vieira, Luiz Gonzaga fez o curso científico no Colégio Estadual de Araguari, que concluiu em 1967. Como exercia grande influência no meio estudantil e tinha bom relacionamento com os colegas, com os professores e com o pessoal administrativo, logo foi convidado pelo diretor Antônio Marques para lecionar no colégio. “Não era dos mais brilhantes. Tinha colegas que sobressaíam mais do que eu”, recorda-se.

Lecionar, até então, não constava de seus planos. Ele sonhava em cursar Geologia em Ouro Preto, MG, e seguir a profissão. Chegou a fazer um cursinho preparatório à noite, em Uberlândia, MG, enquanto começava a lecionar. O percurso entre as duas cidades, de 58 km, era pela estrada de chão, passando pela antiga ponte do pau furado, sobre o rio Araguari, famosa pela triste lembrança da violenta injustiça cometida contra os irmãos Joaquim e Sebastião Naves, no mais famoso caso de erro judiciário do País.

Nesse ano começou a gostar de Matemática, quando decidiu se mudar para Goiânia, para prestar vestibular. A opção não poderia ser outra, passou, matriculou-se na então Universidade Católica de Goiás, e começou a estudar. Como não tinha bolsa de estudo e nem queria contar com a ajuda financeira do pai, que não teria como ajudá-lo, decidiu trabalhar para se manter. Como só achava emprego durante o dia, teve que trancar a matrícula por dois anos, e o curso, que normalmente dura quatro anos, foi completado em seis.

Carreira no magistério

O primeiro emprego em Goiânia, como professor de Matemática, em 1968, no Colégio Ipiranga, oportunizou uma amizade com o proprietário, o professor Zeuxis de Morais, que foi vereador em Goiânia e seu aluno na então UCG. Na seqüência, lecionou no Liceu de Goiânia, no Instituto de Educação de Goiás, no Colégio Assunção e no Educandário Pio XII.

Em 1971, surgiram outras oportunidades, que aproveitou: convidado pelo diretor Mozart Barbosa, trabalhou no então Departamento de Ensino de II Grau da Secretaria da Educação do Estado, como inspetor; e, depois, a convite do diretor do Departamento de Ensino Supletivo, da SEE, Delson Leone, criou o Centro de Estudos Supletivos, no Setor Aeroporto, que serviu de modelo para a unidade que funciona hoje no Setor Universitário.

Logo após a formatura, em 1974, prestou dois concursos públicos para o magistério, e passou em ambos: da Escola Técnica Federal de Goiás e da UCG, quando começou a sua carreira, pelo então I Ciclo de Estudos Gerais, passando a atuar só nessas duas instituições de ensino. Foi o primeiro concurso para contratação de professores que a universidade realizou.

Houve um intervalo de dois anos (1978 e 79), para fazer o mestrado em Estatísticas e Métodos Quantitativos na Universidade de Brasília, quando se mudou para a Capital Federal. Na época, passou em concurso para ser professor da UnB e lecionou nesse período. Mas os planos tiveram que ser mudados: a ETFG não o liberou para fazer a dissertação de mestrado e, com isso, depois de concluídos os créditos, teve de retornar a Goiânia. Conseguiu apenas o título de especialista.

Na ETFG ocupou as mais diversas funções, de professor a vice-diretor, passando pela Diretoria de Ensino, Coordenação da Supervisão Pedagógica e a Coordenação de Matemática.

Trajetória na PUC Goiás

Luiz Gonzaga sempre se dedicou ao magistério, com algumas rápidas passagens pela administração e pela representação classista na hoje PUC Goiás. Em 1981 foi eleito diretor do Departamento de Matemática e Física, cumprindo dois mandatos de dois anos. Na época, era elaborada uma lista tríplice, cabendo ao reitor a escolha.

Nunca se filiou a qualquer agremiação partidária, mas sempre teve atuação política, liderando seus colegas e se destacando. Seu estilo discreto, conciliador e a seriedade como sempre atuou serviram para um convite para ser o ‘tértius’ numa disputa entre as duas forças políticas que sempre dominaram a Associação dos Professores da Universidade Católica (APUC): o Partido dos Trabalhadores e o Partido Comunista do Brasil (PC do B). Com a sua escolha, conciliando os dois lados nessa briga, foi eleito para presidir a gestão 1996/98 da APUC e no período conseguiu três importantes feitos: acordos coletivos de trabalho, em conjunto com o Sindicato dos Professores de Goiás (Sinpro-GO), com algumas conquistas sociais, vantagens financeiras e ganhos reais no salário; dobrar o número de filiados à entidade, a partir de reuniões em todas as congregações; e os primeiros estudos para a criação de um Plano de Previdência Complementar para os professores, que chegou a ser discutido com a Reitoria, mas não levado adiante. Constatou-se que, na época, era elevada a média de idade dos professores e se tornava necessário criar uma opção de aposentadoria ao sistema oficial, que lhes assegurasse mais recursos financeiros para a sua manutenção. Chegou a contratar um especialista para elaborar um plano de Previdência Privada Complementar.

Em 2001 foi convidado pelo então grão chanceler, padre José Pereira de Maria, para assumir a então Vice-Reitoria Acadêmica da instituição, num período de transição, que exerceu por quase dois anos. Na época, teve condições de imprimir o seu estilo conciliador, conseguindo resultados positivos em sua atuação.

Na Prefeitura de Goiânia

Ele teve uma única experiência no setor público, no terceiro mandato do prefeito de Goiânia, professor Nion Albernaz (1996/2000). Convidado pela sua colega na PUC Goiás, professora Geralda Albernaz, então primeira dama da cidade e presidente da Fundação Municipal de Desenvolvimento Comunitário (Fumdec), assumiu a superintendência da instituição, responsável pelas ações sociais em Goiânia, e desempenhou com eficácia o seu trabalho. Função técnica, levou sua experiência para ajudar a melhor estruturar, funcionalmente, a Fumdec, dando-lhe condições para o melhor exercício de suas atividades, no auxílio a pessoas que mais necessitavam do apoio do poder público.

“Foi uma experiência rica e uma oportunidade de trabalhar com uma pessoa séria, dedicada, muito atuante e presente nessa área, a professora Geralda Albernaz, responsável por um período de grandes realizações, quando a Prefeitura de Goiânia teve uma atuação forte e eficaz no atendimento social”, disse. No período, ele conseguiu uma parceria consistente da Fumdec, por meio do Conselho Municipal de Assistência Social, que presidia, com a PUC Goiás, a partir do apoio da então secretária nacional de Assistência Social, a hoje senadora Lúcia Vânia, do PSDB. A parceria viabilizou recursos financeiros para programas sociais da Sociedade Goiana de Cultura, como o Instituto Dom Fernando, utilizados na usina de reciclagem de lixo, na Escola de Circo e na consolidação do Centro de Estudo e Pesquisa Aldeia Juvenil (CEPAJ), inclusive liberando técnicos para trabalhar no CEPAJ.

Vida sentimental

Em família: com o filho Luciano, a nora Graziela, o filho
Luiz Guilherme, a nora Alessandra e o neto Guiguinha,
o filho Daniel, a nora Waira, a filha caçula Gabriela, e a
mulher Cida, com os filhos Hugo e Larissa

Tranqüilo no falar, no agir e no andar, sem pressa para nada, sempre com um sorriso ao falar, Luiz Gonzaga teve três experiências conjugais.

A primeira, com a professora Rose Meire Ribeiro do Nascimento, que conheceu em Uberlândia e com quem se casou em 1971 em Brasília. Eles tiveram três filhos: Luiz Guilherme, zootecnista graduado pela PUC Goiás; Luciano, corretor; e Daniel, professor de Educação Física, todos casados, e que lhe deram dois netos.

Quando estava na Fumdec conheceu Juliana Cláudio Camilo Néri, com quem se casou em 1998 e que lhe deu a filha Gabriela, em 2000. A união durou mais três anos. A caçula, hoje, o faz lembrar os velhos tempos, ao levá-la para as diversas atividades, como cursos de dança, esportes etc.

O terceiro casamento, e atual, foi em 2003 com a advogada Maria Aparecida de Medeiros Vieira, que tem dois filhos: Hugo, médico, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais; e Larissa, que faz o sexto ano do Curso de Medicina na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), SP.

Aposentadoria

Já aposentado pela ETFG e pelo INSS, Luiz Gonzaga se prepara para encerrar, em definitivo, a carreira no magistério e passar a cuidar de seu sítio, no vizinho município de Santo Antônio de Goiás, onde já passa todos os momentos disponíveis que tem. Ali, cuida do jardim, das plantações, dos pequenos animais e aves que tem, e leva uma vida tranqüila, com a qual todos sonham.

Ele se lembra de quando chegou à universidade, para estudar. Nessa época, a Rua 10 tinha asfalto até o córrego Botafogo, onde havia uma ponte de madeira. Era reitor o padre Cristóbal Álvares Garcia, e a Praça Universitária era um projeto, que se concretizaria nos anos seguintes.

“A universidade faz parte de minha vida”, afirma, para destacar que essa presença foi nos bons e nos maus momentos. Conforme relata, participou dos mais diversos momentos na instituição, primeiro como aluno, depois como professor, dirigente de entidade representativa dos professores e, por fim, como gestor, numa área vital para a instituição, sempre colhendo frutos positivos.

“Você só conhece uma pessoa quando ela passa por todas as funções”, ressalta, para resgatar as palavras do presidente do Sinpro-GO, Geraldo Santana, sobre sua participação na mesa de negociações dos dois lados: primeiro como representante dos docentes e, depois, representando a universidade, sempre com uma postura de equilíbrio e bom senso nas discussões. “É um fato raro”, lembra.

Por onde passa, só encontra amigos. O gerente Contábil e Financeiro da PUC Goiás, João Sobreira de Macedo, que o conhece desde que entrou na universidade, ao vê-lo, dá-lhe um abraço e faz a observação:

- O Luiz é uma relíquia.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

JEITO CABLOCO

Por Carla Lacerda
Fotos: Arquivo pessoal


Adevanir Ferreira Barbosa
Aquela colcha de retalhos que tu fizeste
Juntando pedaço em pedaço foi costurada
Serviu para nosso abrigo em nossa pobreza
Aquela colcha de retalhos está bem guardada.

Agora na vida rica em que estás viveeendo
Terás como agasalho colcha de cetim
Mas quando chegar o frio em teu corpo enfermo
Tu hás de lembrar da colcha e também de mimmm.

A melodia suave e a voz inconfundível da dupla sertaneja Cascatinha e Inhana,sucesso absoluto entre as décadas de 1950 e 1970 no Brasil, rompia o silêncio de Piracanjuba, município com vocação agropecuária do Sul goiano. O rádio de madeira Semp (atual Semp Toshiba) era a sensação do momento nas fazendas da região e conseguia reunir uma boa parcela da população em torno dele. Ainda moleque, com 8 anos, Adevanir Ferreira Barbosa se encantava com a novidade tecnológica, que atraía os vizinhos à sala de estar da sua família. “Parentes e amigos da roça se juntavam para ouvir as músicas e também a Voz do Brasil, o nosso Jornal Nacional”, brinca hoje o senhor de 59 anos, funcionário da Pontifícia Universidade Católica de Goiás desde 1985.

Mas, naquela época, seu Adevanir nem de longe sonhava como aqueles fins de tarde frutificariam em sua vida. Semente no coração, as músicas raízes encontraram solo fértil para se desenvolver na vida do menino de sorriso largo. A dureza da lida no campo era quebrada pelo embalo dos Sabiás do Sertão – codinome do casal Cascatinha e Inhana:

Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Ai menina, meu amor, minha flor do cafezal
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal

Ou pela sanfona de Caçula e Marinheiro:

Sei que na vida perdi
A minha felicidade,
Ficou somente amargura
Paixão, tristeza e saudade!
Lá no cantinho do céu
Sei que está me esperando
Aquele alguém que foi meu
Por quem eu vivo chorando!

O fato é que em pouco tempo não somente a enxada seria instrumento nas mãos de Adevanir. A voz rouca e a habilidade com o violão também se tornaram um diferencial na história de um dos porteiros mais simpáticos da Área 4 da PUC Goiás.

De volta à cidade natal

Foi em Picanjuba que o menino Adevanir descobriu o rádio. Mas foi quando retornou com a família para Morrinhos, sua cidade natal, após uma temporada em Goiânia para cursar o primário, que o jovem começou a cantar junto com o irmão Iron. “O pessoal começou a nos chamar para cantar em festas. E como a gente sempre gostou de música raiz, sertaneja, a gente ia”. No repertório, canções de Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Silveira e Silveirinha, Zico e Zeca, Liu e Léo, entre outros. “Mas era tudo só por diversão, por gosto mesmo. Nunca pensei em fazer disso uma profissão”.

E a labuta diária não dava mesmo tempo pro seu Adevanir.

- Pensa num homem que já puxou enxada! - comentou ele, durante uma sexta-feira de novembro ensolarada.

E eu pensei. Seu Adevanir estava diante de mim, com uniforme impecável, sapatos e meias pretas, relógio no pulso esquerdo, e uma atenção, uma educação, uma solicitude imensuráveis, e infelizmente, raras nos dias de hoje. A todos que passavam pelo portão da Pró-Reitoria de Extensão e Apoio Estudantil, ele cumprimentava, dava bom dia, atendia às solicitações, resolvia o que lhe era pedido.

- Sabe, Carla, eu não tenho muito estudo. Mas a educação é de berço. Eu peguei responsabilidade grande desde muito cedo.

Verdade. Com 5 anos, seu Adevanir capinava a roça. Aos 10, cuidava do pasto e da lavoura. Aos 13, comandava os peões que seu pai, Antônio Luiz Barbosa, contratava quando ficava responsável por uma alguma empreita na zona rural. Tocou gado. Tirou leite. Plantou arroz. Aprendeu, na prática, o que é viver em família.

- Sempre fomos muito unidos (Adevanir tem mais seis irmãos). Mudamos várias vezes de cidade, de fazenda, mas sempre juntos – eu, pai, mãe e irmãos. Se eu te falar... É uma coisa que não tem lógica.

- Pra você ter ideia: eu sou um dos mais novos e fui o último a casar, porque cuidava dos meus pais. Tinha medo de minha futura mulher não gostar deles – diz seu Adevanir.

- Mas dei sorte. Encontrei uma mulher boa. Nós combinamos que é uma beleza! – anuncia, sorrindo.


Seu Adevanir, com a esposa Rosilda Santos Barbosa

Em Goiânia

E foi na segunda vez que morou na capital do Estado, a partir de 1974, que seu Adevanir conquistou não só o coração de Rosilda, mas também um espaço no mercado de trabalho da já concorrida zona urbana goiana. Primeiro trabalhou no Colégio São Damiano, no Parque Ateneu, local onde conheceu a esposa. Depois numa empresa chamada Eletrocon.

- E aí sabe quando parece que Deus tem uma coisa boa pra você usufruir?

- Pois é – continua seu Adevanir. Um antigo diretor do Aldeia Juvenil, o professor Benedito, o Bené, pediu indicação para as irmãs do São Damiano de alguém que sabia plantar, cuidar de porco, enfim, de alguém que sabia das coisas da fazenda.

Nos anos 1980, o Aldeia Juvenil ficava no câmpus 2, área que hoje concentra os cursos de Zootecnia, Educação Física, Gestão Ambiental, além de alguns mestrados. O Aldeia foi criado a partir de uma iniciativa de um grupo de professores da Universidade Católica de Goiás, motivado pela situação do menor infrator e pelo compromisso de buscar soluções para o problema.

- As irmãs me indicaram. Fiquei três anos no Aldeia. Foi uma experiência muito boa, de poder ajudar quem precisa. Lá tinha uns “cablocos meio danados”, mas dá uma satisfação quando encontro alguns deles hoje, casados, trabalhando. Muitos me tinham como pai – recorda-se seu Adevanir.

E Deus continuou zelando da vida do jovem de sorriso largo. Durante sua temporada no Aldeia Juvenil surgiu um curso para ser segurança na universidade. Seu Adevanir fez, e, desde então, trabalhou em todas as áreas da hoje PUC Goiás. Há cerca de oito anos, está na Área 4, na entrada da Proex.

- A universidade é a minha segunda casa, minha segunda família.

Cantarolando

Seu Adevanir não fez do dom de cantar uma profissão, mas também não desperdiçou o talento.

- Tem que ver ele cantando. É uma beleza! – diz uma jovem ao subir as escadas rumo à Proex.

O reconhecimento já é público pelos corredores da PUC. Mas seu Adevanir é modesto.

- Não, não é assim não – tenta desvencilhar-se dos elogios.

A repórter decide tirar a prova dos nove.

- Canta um trechinho de uma música pra mim, seu Adevanir... Que música o senhor ouvia, o senhor gostava?

De que me adianta viver na cidade
Se a felicidade não me acompanhar
Adeus, paulistinha do meu coração
Lá pro meu sertão, eu quero voltar.

Só estes quatro versos de “Saudade da minha terra” foram mais do que suficientes para perceber que Seu Adevanir é bom mesmo de “gogó”. E, graças, a insistência do irmão José Ferreira, que hoje tem 71 anos, ele começou a usar o tempo livre para cantar.

Primeiro, no Jardim Bela Vista, bairro onde mora. “Reunimos com os vizinhos e amigos nos fins de tarde e começamos a cantar”, relata. De repente, o grupo começou a receber convites para tocar em festas de casamento e outros eventos. Já passaram por Bela Vista de Goiás, Hidrolândia, Piracanjuba, Pontalina, Jaraguá, Aparecida de Goiânia, entre outras cidades.


Seu Adevanir (o primeiro à esq.), com o grupo Tradição Sertaneja
E, em 2009, também por incentivo do irmão Zé, sanfoneiro, Adevanir e o grupo, já batizado de “Tradição Setaneja”, gravaram um CD.

- Começou como uma brincadeira. O Zé tinha medo de morrer e de a gente não deixar nada para a família, nenhuma lembrança. Daí, a gente reuniu o povo, demos uma passada nas músicas e gravamos, de uma vez, numa gravadora do Novo Mundo. Eu nunca tinha entrado num estúdio.

Foram feitas 500 cópias do CD “Cavalo Preto – Chalana”. Além das músicas de abertura, instrumentais, que emprestam o nome ao álbum, outras 14 faixas foram gravadas. Todas elas, de raízes. Tem “Franguinho na Panela”, “Não tenho Piedade”, “Telegrama”, entre outras.

- A gente nunca imaginava gravar um CD -, comenta seu Adevanir, que também tem outros feitos artísticos – ele participa do grupo de Folia de Reis da PUC, que, inclusive, tem apresentações marcadas para os próximos dias 9, 10 e 11 de dezembro.

O senhor de sorriso largo continua:

- Parece que tudo tem um limite, mas com a música é diferente. Ela é infinita. O grupo surgiu, foi crescendo meio desproporcionalmente...

Ainda bem, seu Adevanir. Hoje, nossos olhos e ouvidos agradecem o privilégio de poder testemunhar e escutar uma história tão bonita. Certamente daria uma bela letra de uma moda sertaneja.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

TALENTO LAPIDADO

Danilo Alencar
Por Carla Lacerda
Fotos: Wagmar Alves e arquivo pessoal

- O que eu faço aqui é o que dou conta de fazer. Eu dei conta de vender e dou conta de fazer teatro.
    
O instinto de sobrevivência sempre foi algo muito latente na vida do teatrólogo Danilo Alencar, 54. Muito antes de mostrar as quase duas centenas de troféus que conquistou com seu grupo “Arte & Fatos”, expostos em vitrine na Coordenação de Arte e Cultura (CAC) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, o artista apresentava era outro produto pelas ruas da Brasília dos anos 1960 e 1970. Nascido em Tiros, cidadezinha mineira do Alto Paranaíba, mas criado na recém construída capital federal, Danilo aprendeu desde muito cedo a se “virar” na vida. Nas adjacências do Setor Hoteleiro Sul, o então menino de 8 anos ganhava um troco vendendo picolés ou ajudando o pai a comercializar o salgado feito pela mãe na Sociedade de Transportes Coletivos de Brasília, a TCB, até hoje uma das grandes empresas do Distrito Federal.

 - Nesta época eu engraxava, limpava quintal, encerava casa para outros, vendia picolé naquela região...

 - E na sua adolescência você já sabia que queria fazer teatro?

 - Não, não. De jeito nenhum.

 - Mas o que você pensava? Em que área iria se formar?

 - Não, eu não sabia que eu ia me formar; na verdade, achava isso muito pouco provável.

 - Então, você pretendia...

 - Trabalhar, eu tinha que trabalhar; trabalhar. Era trabalho, depois trabalho, depois trabalho, depois trabalho.

E foi assim, sustentado nos pilares ensinados por seu Ulisses e dona Nazaré – “meus pais deixaram dois legados que foram a base, o termômetro, o grande guia na vida de todos nós (refere-se também aos 14 irmãos): trabalho e honestidade” –, que Danilo, paulatinamente, conquistou suas vitórias. Foi da lida diária que colheu elementos que mais tarde transformaria em ofício permanente, em arte, em risos e lágrimas para o grande público. Foi da labuta como vendedor e representante comercial durante mais de 20 anos, e da oportunidade que se abriu quando passou no vestibular de História na PUC Goiás, que conseguiu desenvolver o talento guardado e adormecido na alma.

 - Se eu não estivesse na PUC, era muito provável que continuasse trabalhando como vendedor. Foi aqui que tive a oportunidade de agregar valores, de estudar e de poder exercer o meu trabalho (Danilo é funcionário da universidade desde 2000).

Ele continua:

 - Eu me sinto muito, muito, muito feliz em ter a minha carteira assinada e todos os direitos que um ser humano obrigatoriamente tem dentro de uma instituição. O que eu faço aqui é o que eu dou conta de fazer; eu dei conta de vender e dou conta de fazer teatro.
   
De Tiros rumo ao Planalto Central

Localizada a 365 quilômetros de Belo Horizonte, a cidade de Tiros, já conhecida como “capital dos diamantes”, e hoje com pouco mais de 7 mil habitantes, é considerada um polo de emigração. O êxodo dos nativos em busca de oportunidades é marca consolidada do município. Tanto que há tirenses espalhados por todo o Brasil e exterior, de forma mais concentrada na capital mineira, em Brasília e nos Estados Unidos. A cidade até criou uma festa anual, “Tirense Ausente”, que tem como público-alvo as pessoas nascidas na região, mas que não residem mais no município.

 - Minha família saiu de Tiros num contexto de migração muito forte que houve no início da década de 1960. Minha cidade natal é pequena e viveu também muito desta onda de ida para os Estados Unidos -, confirma Danilo.

De Minas Gerais, seu Ulisses, dona Nazaré e os 13 filhos (dois morreram muito pequenos) se estabeleceram em Rubiataba, no Centro Goiano. Foi lá que Danilo, aos 7 anos, ganhou seu primeiro calçado. “Era um conga”, recorda-se. Da rápida estada no município, a família migrou para Brasília, capital federal que acabara de ser construída.

 - Lá eu morava numa...

Momento de hêsito.

 - ...invasão. Brasília estava começando; era o que tinha para as famílias que vinham de fora. Eram barracos residenciais de cerca de três cômodos, que ficavam perto da W-3 Sul. Eu lembro que já existia o Hotel Nacional. Eu e aquela renca de irmãos brincávamos naquelas piscinas com fontes.

Com o crescimento da capital, que ganhava novos prédios dentro de uma arquitetura já planejada e em ritmo acelerado, os barracos foram destruídos. A família de Danilo mudou para o residencial X-Norte, em Taguatinga Norte. “As casas, muito pequenas, eram conhecidas como Pombal, porque parecia mesmo uma casa de pombo”, relata.

Vida apertada numa cidade de avenidas largas, de horizontes largos. Danilo optou por não esmorecer. Trabalhou muito, rabiscou poesias, participou de festivais de músicas, assistiu, aos 14 anos, na Escola Parque, a peça “Trate-me Leão”, do famoso grupo “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, que revelou talentos como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita, entre outros.

Aos poucos a veia artística da mãe – “era autodidata, escrevia poesias” - encontrava meios para pulsar no corpo de Danilo. Em 1974, com 18 anos, estreava no teatro, atuando no espetáculo infantil “Ovolada”, criação coletiva do grupo Cogitação, do qual também foi cofundador. Tal qual um diamante das Minas Gerais, a pedra bruta começava a ser lapidada.

No centro do tablado
Ensaio da peça “Anjos Poetas” na PUC, em 1997
Em 1988, com 32 anos, Danilo começa um novo capítulo de sua história.

 - Depois de um tempo que deixei Brasília e vim para Goiânia, eu ingressei na universidade, um sonho que nunca pude realizar. Assim como muitos jovens brasileiros, eu era arrimo de família, tinha que ajudar em casa. Portanto, um dos momentos mais felizes da minha vida foi saber que eu tinha capacidade de entrar numa universidade. Foi realmente uma vitória porque eu tive uma formação escolar muito frágil; na minha época a gente não tinha opção: ou estudava ou trabalhava.

Na Universidade Católica de Goiás, hoje PUC, Danilo cursou História e não perdeu tempo. Já no primeiro ano de faculdade apresentou o projeto “História no Teatro”, cujo propósito era a representação de fatos históricos por meio da linguagem teatral. Também nesta época fundou o grupo “Artes & Fatos”, do então Programa Cultural, atualmente Coordenação de Arte e Cultura da PUC Goiás, ligada à Pró-Reitoria de Extensão e Apoio Estudantil (Proex).

O diamante começava a reluzir. E, hoje, o brilho materializa-se também nas conquistas do grupo “Artes & Fatos”, que soma 22 anos de trajetória. O repertório já conta com quase 18 espetáculos, muito deles premiados nacionalmente. São aproximadamente 200 títulos, entre troféus e seletivas para participação de mostras importantes em todo o País, como o Cena Contemporânea, de Brasília, e o Festival de Teatro de Florianópolis.

O grupo, que conta atualmente com sete integrantes, também conseguiu a façanha de abocanhar um espaço no cenário concorridíssimo de São Paulo. A peça “Balada de um Palhaço” (clique aqui para assistir ao making of), último trabalho do “Artes & Fatos”, ficou um mês em cartaz na Avenida Paulista, a convite do Sesc. A temporada gerou um convite para que o espetáculo fosse o representante brasileiro no Festival Ibero-Americano do Museu da América Latina, em São Paulo. E mais: “Balada de um Palhaço” deverá ser apresentado em fevereiro do ano que vem, no México.

 - Estamos num momento ímpar do grupo. Os obstáculos vão sendo superados aos poucos. A PUC nos dá apoio de estrutura física, a minha própria contratação é um apoio. Mas viver de teatro não é fácil. A movimentação do grupo pelo interior do Estado e País afora é possível graças às leis de incentivo municipal, estadual e federal. Estamos tendo fôlego e sensibilidade das instituições que, enxergando a perspectiva do sucesso dos espetáculos e a qualidade de trabalho do grupo, têm nos apoiado -, destaca Danilo.

Ele também lembra que a nova produção do “Artes & Fatos”, uma adaptação de cinco contos do escritor João Guimarães Rosa, foi viabilizada a partir da conquista do prêmio Myriam Muniz, concedido pelo governo federal. “Este ano nós fomos contemplados com o prêmio maior em toda a região Centro-Oeste, de R$ 120 mil, que vai custear a montagem do novo espetáculo. Este é um feito muito grande, porque este prêmio, o mais importante do Brasil, antigamente ficava restrito ao monopólio de Rio e São Paulo. É a segunda vez que o conquistamos; com “Balada de um Palhaço” também foi assim”.

Em Madri, Danilo lê artigo sobre seu ícone no teatro
E quais são os próximos sonhos do jovem de hoje 54 anos, que fez da própria vida um roteiro de oportunidades não desperdiçadas?

 - É conhecer o inglês Peter Brook, diretor de teatro e cinema, que mora atualmente na França.

Danilo reforça:

 - Se eu conseguisse traduzir o que o teatro significa para mim, porque eu não posso, seria dizer que ele é meu vício, meu ar, meu alimento. Representa a minha energia, a minha vida.

*****

Conheça alguns destaques do grupo Arte & Fatos:

- 1988 – “Nos Trilhos da História” – a desagregação do sistema primitivo, com adaptações dos textos de Marx e Engels.
- 1989 – “Liberté, Uai” – no bicentenário da Revolução Francesa e centenário da Inconfidência Mineira.
- 1990 até 1995 – “Sob o Sol de Canudos” – no centenário do Movimento de Canudos.
- 1995 - 1ª montagem de "Herdeiros de Zumbi".
- 1997 – “Anjos Poetas” – Um tributo aos 150 anos da morte de Castro Alves.
- 2000 – “Opereta do Cerrado” – para a inauguração do Memorial do Cerrado da Universidade Católica de Goiás.
- 2002 – “Toca Mariles!” Uma história da ditadura militar.
- 2003 – “A Aurora da Minha Vida”
- 2004 – “A Clara do Ovo”
- 2006 – “Balada de um Palhaço”

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O MUNDO A PARTIR DOS VITRAIS

Por Carla Lacerda
Fotos: Weslley Cruz e arquivo pessoal

Wolmir Therezio Amado
A magnitude do prédio impressionava o guri de 5 anos. Os vitrais coloridos, as portas laterais de dois metros, a altura das cadeiras – suas pernas não alcançavam o chão -, as imagens clássicas. Tudo era maior, MUITO MAIOR do que já parecia ser no Santuário Nossa Senhora de Caravaggio, talvez o local mais imponente de Paim Filho, cidadezinha gaúcha localizada no Noroeste rio-grandense. Idealizada pelo capuchinho frei João Crisóstomo e construída em estilo gótico, a igreja possui cerca de 950 metros quadrados de área externa e foi levantada com a utilização de 920 mil tijolos. Um mundo para os olhos do menino. Mas também o ponto de partida de sua trajetória. Do santuário, localizado no município que só em 2004 alcançou a marca de 4 mil habitantes, para a administração de uma universidade que tem mais de 25 mil alunos. A insegurança de criança ficou no meio do percurso. Perseverança e determinação foram conquistadas ao longo do caminho. Surpresas e mudanças de itinerários? Sim, elas também se fizeram presentes na jornada do reitor da hoje Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Wolmir Therezio Amado.

Ideia de ser padre

- Está decidido, Wolmir?

 - Estou sim.

Curta e direta. Foi essa a resposta do jovem de 13 anos quando interrogado pelos frades franciscano-capuchinhos se queria mesmo ir para o seminário. Durante dois anos, Wolmir Therezio havia frequentado o Grupo Vocacional da paróquia. Era um tempo de preparação, quando os clérigos passavam informações e tiravam as dúvidas dos jovens que se mostravam interessados pela vida sacerdotal.

“A ideia surgiu quando menino mesmo. Não tínhamos ninguém na família que fosse padre. Achava bonito”, destaca Wolmir. Ele também lembra do carinho e da atenção de sua avó materna, Laura, sua mãe na fé. “Eu levantava cedo, aguardava a nona acender o fogão a lenha, pegava uma latinha que tinha chocolate e ela colocava o tablete no leite para eu tomar. Sentados à mesa, ela me ensinava as orações básicas, as virtudes cristãs, os mandamentos, a forma de confessar”, recorda.

Foi também a partir de um conselho da avó que, ainda muito menino, Wolmir teve uma experiência valiosa com Deus. O olho direito sempre lacrimejava muito. Não raras eram as vezes, ao longo de um único dia, em que o jovem precisava utilizar um lenço para secar o rosto.

 - Wolmir, você pode pedir um milagre, pode pedir para ser curado.

E, durante a celebração da primeira eucaristia, a graça foi alcançada. “Lembro que depois de comungar, voltei para o banco, ajoelhei e rezei. Meus pais estavam sentados ao meu lado. Comecei a reparar nos vitrais coloridos da igreja. Em um deles havia uma imagem do Menino Jesus de Praga. De repente, parecia que aquela imagem crescia e vinha em minha direção. Desmaiei e só acordei em casa.”

A partir daquele dia, as lágrimas, pelo menos as involuntárias, cessaram.

Os primeiros lugares

  - Nossa! Quanta coisa você está me fazendo lembrar...

A voz embarga. Ele bebe um copo de água. Respira mais fundo. Não chora. A entrevista continua:

 - O que estava escrito no papel que o padre pediu para o senhor entregar a seus familiares depois da prova de catequese?

 - Primeiro lugar. Minha avó chorou muito. Muito.

Naquele momento, Wolmir Therezio – o nome é composto mesmo, diferente do que esta repórter imaginava – celebrava com a avó um dos primeiros desafios vencidos na vida. Ele superou o descrédito de terceiros, que duvidavam de que ele, tímido e muito mais novo do que os outros meninos da catequese, pudesse passar na prova. Quem subestima, na verdade, é tolo, diz o agora reitor.

 - Ih, padre! Este aí não sabe de nada – adiantou-se uma freira, já tentando justificar o que julgava ser uma decepção.

O padre dirigiu-se ao guri Wolmir.

 - Você sabe as orações, Wolmir?

 - Sei.

 - Sabe?

 - Sei, reafirmou.

 - Então reze o Glória ao Pai.

 - Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...

 - A Salve Rainha.

 - Salve, Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve! (...)

 - O Pai Nosso.

 - Pai nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome...

 - O Creio em Deus Pai.

 - Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra...

O padre tirou do bolso da batina um bloquinho e uma caneta. Escreveu no papel e pediu que Wolmir entregasse a seus familiares. O guri ainda não sabia ler.

Na primeira eucaristia, em Paim Filho (RS)
“Minha avó chorou muito. Muito. Meu avô, Francisco, tinha uma alfaiataria e fez um paletó para o dia da minha primeira eucaristia. Fui de gravata borboleta, como manda o figurino. Parecia um miniadulto”, diverte-se, ao contar o episódio.  

O primeiro lugar conquistado aos 5 anos não foi fato isolado na vida de Wolmir. Quando prestou concurso para professor efetivo da Universidade Católica de Goiás, em 1986, o então jovem de 24 anos superou todos seus concorrentes. E quando defendeu sua tese de mestrado, em 1992, pela Universidade Federal de Goiás, tirou nota 10, com louvor – primeira vez que isto ocorreu em 17 anos da existência do mestrado em História.

Na casa da nona

Ele olha da janela do clube, onde trabalha como garçom. Ela, da de casa, onde mora com pais e irmãos. Enamoram-se. Casam-se. Ele atravessa a rua de pedras que o separavam. Passam a morar juntos com a família dela. Três andares têm o sobrado. No primeiro funciona a alfaiataria do seu Francisco Manfredi. Nos dois superiores, acomodam-se a filha Carmen, recém casada, com o marido, também Francisco (o mesmo nome do sogro), e ... os filhos – praticamente um por ano.


Casa da nona
 “Nós moramos sete anos na casa do meu avô – nesta época ainda éramos cinco irmãos – até que meu pai conseguiu comprar uma casa. Era bem próxima de onde estávamos, cerca de três quadras”, relata Wolmir.
Mudança programada. Carmen arruma as malas do marido Francisco e dos filhos Gládis, Gladimira, Gladimir, Wolmir e Rógis. Peraí, cadê as roupas do Wolmir?

- Eu escondi.

- Mas, mãe, eu vou ter que comprar tudo de novo. Roupa é muito cara – argumenta Carmen.

 - O Wolmir fica comigo – insiste Laura.

 - Vou deixá-lo uns dias com a senhora, mas depois ele vem morar conosco.

Wolmir Therezio só deixou a casa da nona Laura quando foi para o seminário em Veranopólis. O contato com pais e irmãos sempre foi constante – mais tarde nasceram os gêmeos Nádia e Nédio. “Sempre estávamos juntos. Meu pai montou um mercado mais tarde – “vendia de tudo, menos roupa” – e nós, os filhos, nos revezávamos para ajudá-lo”, recorda o reitor. “Também brincava muito com meus irmãos. Nossa proximidade era até na roupa”, diz em tom descontraído.

Casa onde morou até os 13 anos

 Família reunida em Paim Filho



Tempo de discernimento

Paim Filho sempre foi uma cidade ligada às atividades rurais, como grande parte dos municípios gaúchos, que tiveram uma colonização diferente do resto do Brasil. O grande fluxo de italianos, alemães e poloneses resultou numa nova forma de se lidar com a terra: os minifúndios. Por isso, nada mais natural que, nos idos da década de 1970, o destino dos meninos que terminavam o ginásio fosse as escolas agrícolas. Natural, mas não unânime.

Com apenas 13 anos, Wolmir Therezio decidiu por um caminho diferente. Aos 14, começou sua jornada nos seminários da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, ligada a São Francisco de Assis. O Ensino Médio foi feito numa unidade em Veranopólis. A graduação em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. “Havia também opções para cursar filosofia em seminários no Sul. Mas acho que herdei o espírito aventureiro e empreendedor de meu pai (Seu Francisco foi o primeiro, por exemplo, a levar o fogão a gás para Paim Filho). Queria conhecer outras culturas”.

Já ambientado nas terras do Cerrado, o jovem prosseguiu com os estudos no seminário. Fez teologia em Goiânia e, em Hidrolândia, o noviciado, tempo de experiência do ser Frade Capuchinho. Mas, em 1985, Wolmir mudou novamente a rota de sua vida. “O seminário foi um tempo de discernimento, de aprendizado profundo, marcante, mas não determinante. Não anulo esta experiência”, diz. “Mas as pessoas se recriam, mudam a direção de seu caminho”.

Wolmir quase se tornou padre. Na foto, recebia o hábito capuchinho


As conquistas

Quatorze anos em Paim Filho, nove em seminários franciscanos, vinte e quatro na Universidade Católica de Goiás (UCG). Não precisa ser perito em matemática para perceber que o maior conjunto das realizações de Wolmir Therezio se encontra nas dependências da hoje PUC Goiás. E não foram poucas. Desde a sua admissão, em 1986, por concurso público para professor efetivo, até os dias de hoje, inúmeras foram as funções desempenhadas.

O jovem coordenou a área de programas e projetos comunitários (1987); assumiu a Secretaria Executiva da Sociedade Goiana de Cultura, mantenedora da Universidade (1992-1996), e se tornou vice-presidente da entidade, em 1997. De 1998 a 2000 foi vice-reitor para Assuntos Acadêmicos. Em 29 de novembro de 2002 foi nomeado reitor, tendo conseguido, em 2009, elevar a universidade ao título de PUC.

Wolmir foi também professor da Universidade Federal de Goiás (1986-1996) e presidente, por dois mandatos, do Conselho Regional de Leigos do Centro-Oeste (1992-1998) e, também por dois mandatos, do Conselho Nacional de Leigos e Leigas Católicos do Brasil (1998-2004), organismo eclesial herdeiro da Ação Católica.

Além do Mestrado na UFG, cujo tema foi “A Igreja Católica e a questão agrária em Goiás. Década de 1950 a meados de 1960”, ele tem duas especializações: em Filosofia da Religião, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em 1991, e Filosofia Contemporânea, também em 1991, pela UFG. 

O guri que descobriu o gosto pela leitura com “O Guarani”, de José de Alencar, aos 12 anos, tem também vasta produção literária. Escreveu “A Religião e o Negro no Brasil”, da Edições Loyola, São Paulo, 1989; “A Igreja e a Questão Agrária no Centro-Oeste do Brasil (1950-1968)”, Ed.UCG, 1996; “Nosso Tempo: Questões da Atualidade”, da Ed. Redentorista, Goiânia, 1997; “Diálogos com a Fé”, Ed. UCG, 2004; “Diálogos com a Educação”, Ed. UCG, 2005; “Diálogos com a Filosofia”, Ed. UCG, 2005; “Diálogos com a História”, Ed. UCG, 2005.

A rotina hoje

“O tempo é precioso. É necessário fazer as escolhas certas”. A definição de prioridades é algo primordial na agenda do reitor Wolmir Amado. Os compromissos são inúmeros. O dia começa bem cedo, às 6 horas. Depois de tomar banho e fazer a barba, o momento é de oração. Numa pequena capela – adaptada em uma das salas do apartamento -, Wolmir reza e lê os salmos. Para otimizar o tempo, a roupa para o trabalho é sempre escolhida na noite anterior. Caso tenha eventos formais, paletó com gravata. Se não, calça e camisa de manga longa – 70% delas são brancas. “Não tem perigo de errar”, brinca.

Na mesa, apenas café preto e vitamina. Wolmir não gosta de comer pela manhã. Uma rápida passada de olhos pelos jornais da cidade e alguns de fora - quando dá tempo. Hora de sair de casa. Quando ia a pé para a PUC Goiás, gastava apenas dez minutos. Por motivo de segurança foi aconselhado a fazer o trajeto de carro. Agora são quatro minutos.

O almoço é o momento de reunir toda a família em casa – a esposa, professora Suely Maria da Silva Amado, e os dois filhos, Sarah, 18, e Fernando, 14. Meia taça de vinho para garantir a saúde. Pequeno repouso e retorno à universidade. No fim da tarde, um happy-hour tipicamente gaúcho. Mesmo longe do inverno dos pampas, o hábito de tomar chimarrão é sagrado. “No início, a Suely conseguia tomar só uma cuia. Agora me acompanha até terminarmos a garrafa térmica”.

Os eventos noturnos – colações de grau, entre outros - também não são raros. Quando chega em casa, das 10h30 às 11h30, o tempo é dedicado a despachos pela internet. Um pequeno lanche é feito antes de acompanhar a programação da UCG TV. Dormir mesmo só depois da meia-noite.

Nos fins de semana, Wolmir caminha pelas ruas da capital e separa um tempo para escrever artigos e também para revisar algum documento administrativo da universidade. Domingo à noite vai a missa. Começa a semana sob as bênçãos de Deus.